O que as Fanfics podem nos dizer sobre diversidade

Gust
9 min readAug 13, 2020

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Algumas vezes quando uma história de um jogo ou filme acaba, ficamos com um sentimento de saudade onde precisamos saber o que acontece com nossos personagens queridos. Queremos criar histórias sobre seus romances, colocar eles em outros universos ou em experiências que relembrem nossas vidas ou anseios. Nesse quesito, fãs criam histórias, desenhos, romances e outros universos para que seus personagens favoritos possam se aventurar e representar seus escritores e fãs em seus diversos dilemas pessoais, e para isso, criamos e escrevemos fanfiction.

A origem da fanfic e o que ela se tornou

A fanfic tem sua tradução como “ficção de fã” literalmente, mas sua origem é conhecida na forma de fanzines, da contração do inglês, “fan megazines” que em português significa “revista de fãs”. Sendo uma narrativa escrita e produzida por fãs, as fanzines apareceram pela primeira vez na década de 70 quando o pessoal começou a criar outras histórias dentro do universo de Star Trek, o famoso Jornada nas Estrelas.

Com a popularização da internet no final dos anos 90, muitos fãs conseguiram então dividir suas narrativas para mais pessoas que possuíam o mesmo interesse. Por serem narrativas feitas de universos já criados, fanfics contam com apropriações de personagens e enredos de outras histórias, filmes, quadrinhos e vídeo games, então tem como finalidade criar histórias paralelas e outros caminhos para personagens e universos queridos que conhecemos.

As fanfics hoje em dia tem diferentes classificações que dependem da mudança da história, do romance entre os personagens, alterações que podem acontecer nas personalidades dos personagens de obras originais, e até mesmo o numero de palavras que a fanfic tem. Aqui temos alguns exemplos:

Crossovers: A maioria deve conhecer esse termo, significa histórias que misturam universo de uma obra original com outra, como fazer por exemplo uma história com heróis da DC e heróis da Marvel. Crossover são populares e existem no âmbito fora das fanfics, principalmente em jogos.

U.A: Conhecidos como AUs Alternantive Universes, ou Universos Alternativos, essas fics utilizam personagens originais sem alterarem sua fisionomia e psicologia, porém, colocando eles em um universo que não pertence a obra original, como por exemplo, a fanfic de Overwatch: Petals on the River (https://archiveofourown.org/works/7394560), onde os personagens vivem na década de 20 na Califórnia.

Slash: Fanfic cuja o tema da história se concentra na relação amorosa entre dois homens.

Femslash: Fanfic cuja o tema da história se concentra na relação amorosa entre duas mulheres.

OOC: Out of Characters ou “fora de personagem” são fanfics que o comportamento e a personalidade são drasticamente alterados do que realmente são da sua obra original, como se alguém escrevesse uma história sobre o Peter Parker e ele fosse um atleta folgado e que faz bullying com outros ao invés de um nerd simpático e engraçado que conhecemos.

Temos outros exemplos de fanfics, as classificações existem para avisar sobre o conteúdos sexuais e também para qual idade a história é indicada, adultos ou pessoas mais jovens.

Bom, após tudo isso explicado, você deve estar pensando também sobre a questão de direitos autorais. Afinal, como as pessoas podem simplesmente pegar personagens e universos criados por outras pessoas e transformar em suas histórias? A questão sobre direitos autorais é relativamente recente, e dentro do mundo das fanfics parece existir uma regra subentendida que quando uma pessoa escreve uma, ela o faz sem a intenção de vender a história e ganhar dinheiro com ela, por isso, a maioria dos autores profissionais permitem que fãs continuem com as suas fanfics, uma vez que isso também traz mais aproximação ao público com a obra original, além de um relacionamento positivo com fãs. No entanto, não são todos os autores que gostam que seus personagens e universos sejam compartilhados em outras histórias, por outras pessoas. George R.R. Martin não é um grande apoiador de fanfics, segundo ele “Eu não sou um fã de fanfictions” “Eu não acho que seja também uma boa pratica de escrita quando você pega emprestado personagens e universos já criados por outras pessoas” Ele também diz que sobre a questão legal, que não gostaria de saber se alguém está fazendo uma história com seus personagens pois iria intervir de alguma forma, então seria melhor ele não saber. Anne Rice, conhecida por suas crônicas sobre vampiros entre a década de 90 e 2000, perseguia judicialmente qualquer pessoa que se envolvesse em alguma fanfic sobre seus contos, segundo ela, em sua webpage em 7 de Abril de 2000, Anne escreveu “Eu não permito Fanfiction. Esses personagens são registrados. Me desanima profundamente até em pensar sobre uma fanction com os meus personagens. Eu aconselho meus leitores a criarem suas próprias histórias com os seus próprios personagens” mas atualmente, apesar de tudo, ela está mais leniente com relação a isso.

Anne Rice e suas crônicas de vampiros.

No entanto, apesar de muitas pessoas escreverem e lerem fanfics hoje em dia, existe um estigma com o público que gosta desse mundo literário, fora do âmbito de direitos autorais.

O que a fanfic diz sobre quem a escreve

Muitas pessoas que não são envolvidas com o universo da fanfic diz que esse tipo de narrativa, são de dar vergonha, que não é uma prática de escrita de verdade ou de qualidade e que são feitos apenas por meninas pré-adolescentes que sonham que o Edward do Crepúsculo as beijem, mas isso não é tudo. Com relação a escrita, hoje temos autores que começaram a carreira como escritores de fanfics e hoje são escritores profissionais ganhadores do prêmio Hugo, que é entregue anualmente para o maiores trabalhos de fantasia ou ficção cientifica. No caso, estou falando de Neil Gaiman que ganhou um Hugo pela sua fanfic sobre Sherlock Holmes/H.P Lovecraft

Nesse print, um usuário pergunta se Neil gosta de fanfiction, no qual ele responde que ganhou um Hugo pela sua fanfiction e que é a favor.

Mas o problema das pessoas com fanfic não parece ser somente com a prática de escrita e direitos autorais. Desde o seu nascimento em fanzines, as fanfics são em sua maioria, escritas por mulheres, LGBTs e pessoas de cor que na mídia profissional seja ela, cinema, video game ou séries, só recentemente começou a falar de narrativas dessas pessoas como o foco da história ou a ter elas como protagonista. Em fanfics, vimos romances sendo desenvolvidos com personagens até então considerados hetéros ou que não tinham um envolvimento romântico, participando de histórias envolventes e diferentes do universo em que foram criadas. Uma vez que esse público não era representado na mídia, as pessoas usavam então avatares já criados e amados para contar a suas histórias, sobre diversos pontos de vista que eram e ainda são muito ignorados em essas plataformas. É nessas fanfics que muitas pessoas vêem que pode existir um começo, meio e fim para protagonistas mulheres que não se contentavam em ser só o interesse romântico, casais LGBTs com finais felizes ou pessoas de cor que não queriam apenas ser coadjuvantes para que o protagonista branco alcance o seu potencial.

Eu, as fanfics e os jogos

Eu pensei em escrever sobre esse tema, pois nesse tempo de quarentena eu voltei a ter um hábito que não tinha desde os meus 17 anos. Aos 17, eu lia fanfics e via artes sobre então meu casal favorito, Nivanfield, nome de ship entre Chris Redfield e Piers Nivan, da série, Resident Evil. Bom, a Capcom provavelmente nunca irá anunciar o protagonista da sua série mais famosa como gay, mesmo ele não tendo nenhum relacionamento romântico ou interesse na história do jogo (e pra ser sincero, a Jill iria ficar melhor com o Carlos, eles tem mais química) E algumas pessoas podem pensar que isso não é importante para a história do jogo, e verdade, Resident Evil não foca em relacionamentos amorosos, mas quantos filmes e jogos você vê que a menina fica com o protagonista hetéro sem que isso melhore algo na trama? Pois bem, mulheres, LGBTs e pessoas não-brancas também querem esse tipo de romance, algo que seja focado na história de amor entre dois soldados que sobrevivem a um apocalipse zumbi, e tem muitas histórias de Nivanfield que expandem a história de Piers contando outros aspectos que acabam sendo mais interessantes do que o final amargo da campanha de Chris no jogo.

Atualmente minha obsessão está sendo com um ship de Overwatch. O jogo foi lançado em 2016, e apesar de estar no caminho de ser um jogo inclusivo no que se diz respeito a questão de: personagens LGBTs e mulheres com corpos diferentes que não seja um magro, nós temos, de mais de 20 personagens, 2 que são confirmados como personagens homossexuais, e 2 como personagens femininas que quebram o estigma de que mulheres nos jogos tem que ser apenas jovens e magras (Zarya e Ana). Overwatch também tem uma grande parcela de personagens não-brancos, mas ainda vemos discussões de quando vão incluir uma mulher negra como jogável (Orissa não é considerada, uma vez que é um robô construído por uma personagem negra que não aparece efetivamente no jogo) Parece pouco, e é, mas acho que quando se trata de video game, todo progresso nesse caminho é algo bom já que tudo de diferente do esperado é recepcionado negativamente por uma parcela de gamers que simplesmente não aceitam o diferente ou o outro.

de qualquer forma, temos o mundo das fanfics para criar histórias mais engajadas e diferentes do que já foi apresentado pelo universo, como meu exemplo, de Overwatch. Desde que começou a quarentena eu ando fissurado em um certo cowboy e em um arqueiro do jogo…isso mesmo.

O ship Mchanzo já foi um dos mais famosos do Overwatch, junto com Pharmercy (ship da Pharah com a Mercy) e os dois são os favoritos do criador do jogo, Jeff Kaplan. Desses dois já vi histórias em que eram um casal na Califórnia em 1920, outra onde McCree era dono de um salão de beleza junto com outros personagens e o Hanzo era um cliente que acaba se apaixonando pelo dono. Temos também histórias de um Hanzo participando da nova Overwatch, um preludio do que pode acontecer em Overwatch 2, que alias, foi anunciado ano passado mas não temos noticia nenhuma mais. O jogo lançado em 2016, já está praticamente uns 3 anos sem nenhum desenvolvimento em sua trama, mas os fãs apaixonados pelo seus personagens, continuam criando outras histórias e tramas que continuam alimentando os jogadores que se encantaram com o universo criado pela Blizzard mas atualmente estão decepcionados com alguns direcionamentos da empresa.

Criadores de jogos são favoráveis com fanfics e fanarts (artes feitas pro fãs) de seus personagens, pois isso sempre irá aproximar o público com o produto final que é o jogo. Eu já vi pessoas online que era fascinadas pelo casal fictício Mchanzo, porém nunca jogaram Overwatch e resolveram comprar o jogo recentemente para poder controlar seus personagens favoritos. Assim como Jeff, temos outros criadores e desenvolvedores que também adoram explorar o mundo de romance criado por fãs

No quarto aniversário de Dead by Daylight, pessoas envolvidas na produção do jogo colocaram algumas mensagens para o público, e nessa Nikki diz “minha missão pessoal é ver toda fanart sobre DavidxDwight” dois personagens do jogo que alguns fãs os colocam como casal.

Ainda falando sobre mim, o que apenas é um hobby agora de ler histórias eróticas ou românticas sobre Mchanzo, e apreciar artes feitas por fãs, para o eu de 17 anos era todo um universo para explorar personagens que eu achava interessantes, tendo experiências e anseios iguais a mim, que era apenas um garoto que ainda não estava confortável em se assumir como gay. A representatividade em video games na época não era grande e esse era o meio que um grande público queer gamer tinha de se juntar em comunidade e dividir interesses. O que a gente não achava nas televisões e games, mulheres, LGBTs e pessoas de cor produziam com seu talento histórias cativantes e interessantes, ampliando universos já criados e queridos pelo público. Apesar de estarmos vivenciando mais representação na mídia tradicional, sempre teremos a criatividade de fãs contando histórias que produtores e diretores não tem coragem ou são impedidos de fazer.

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Gust

Fiz um curso de uma semana de jornalismo de games, e aqui vai ser onde quero praticar minha escrita sobre jogos ;)