Matando “Deus” em jogos Japoneses.

Gust
6 min readOct 27, 2020

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Então você começou sua jornada nesse jogo novo, seu protagonista começou em uma cidade pequena e familiar, realizando tarefas como ajudar uma senhora a carregar as compras ou entregar algum item na loja local para alguém. Você faz amizades com pessoas diversas e interessantes que te acompanham em uma aventura para resolver problemas pessoais e também da cidade local, de repente, seu grupo está envolvido em tramas entre nações e instituições poderosas que ameaçam a ordem da suposta paz mundial. No fim disso tudo, seu protagonista e seus amigos estão mais poderosos e experientes do que nunca, e indo em direção para derrotar o inimigo final que ascendeu a uma divindade afim de destruir o mundo recria-lo a sua visão. Toda a sua aventura te levou a matar um Deus! Quer dizer…não é mais ou menos isso que acontece em todo JRPG?

Por que a gente mata tantos deuses em jogos japoneses? Eles tem alguma aversão a religiões e isso se reflete em seus jogos? E como isso acontece de fato nos jogos?

Como acontece o deicídio em alguns jogos japoneses famosos

Matar deuses não é algo único de games japoneses, mas é com certeza mais comum. Começando pelos JRPGs, temos o exemplo mais famoso, a saga Final Fantasy. De Kafka, Garlomond até Sephiroth, a maioria dos antagonistas da série inspiram em ser algo maior do que são para redefinir o mundo a sua vontade individual, e são derrotados pela força coletiva de um grupo de jovens de histórias e poderes diversos.

Não só em JRPGs, jogos de terror como Silent Hill também mostram os horrores que a religião, principalmente o fanatismo, trazem para a vida do protagonista e o mundo em questão. O culto que existe dentro do jogo está disposto a dar vida a mais diversas abominações e torturar psicologicamente os protagonistas Harry (SH1) ou Heather (SH3) para trazer ao mundo o seu “paraíso”, custe o que custar. Apesar de não ser a força coletiva, mas sim, de um só protagonista que derrota o “deus” em Silent Hill, ainda assim permanece o tema de um culto, ou vilão, querer impor sua vontade ao resto do mundo.

“Mas um Deus nascido pelo ódio jamais criaria um paraíso perfeito!”

O “deicídio” e a vilanização da religião podem acontecer de forma mais sútil como alguns Final Fantasys, empregando somente mensagens visuais ou usando a palavra “deus” como um ser de imenso poder mas não associando a nenhuma religião existente, ou pode ter uma organização religiosa explicita como vilã, em casos como o que ocorre em jogos como Silent Hill e Final Fantasy X.

Wakka: Se mantermos a fé nos ensinamentos de Yevon, isso vai sumir um dia!

Em FF-X a história acontece nos país fictício de Spira, que vive sendo aterrorizada pelo monstro gigante chamado Sihn (parecido com inglês, Sin, de pecado) e o que mantêm a cidade junta e supostamente protegida é a igreja de Yevon, que comanda a população como um sistema teocrático. Por Sihn ser uma ameaça real, a religião Yevon, consegue manter o seu poder, uma vez que a mesma diz que o monstro só será derrotado quando a população seguir fielmente os ensinamentos da igreja. O nome Yevon seria de um antigo imperador que sacrificava civis por poder e acabou se tornando o monstro Sihn, que destruía áreas com população alta e de tecnologia avançada, para que as pessoas o venerassem por medo. Desde então, o resto da população sobrevivente criou a religião com o nome de Yevon, rejeitando todo tipo de avanço tecnológico, pois acreditavam que isso ia evitar de serem destruídos pelo monstro. Tudo isso acontece antes dos eventos do jogo em sí, e o jogador descobre sobre os eventos junto com o protagonista Tidus, que não conhece muito sobre a religião e história do local. Até o final do jogo, Tidus e seus amigos descobrem que a igreja de Yevon mentiu para a população, pois a mesma, sabendo da real versão dos fatos, usava de equipamentos da mais alta tecnologia, enquanto o resto do mundo sofria com a falta dela.

“Isso não é o suficiente. Yevon diz isso, Yevon diz aquilo. Você não consegue pensar por si só?

Então…os Japoneses odeiam religiões e seus deuses?

Depois de vermos alguns exemplos, onde protagonistas de jogos japoneses atacam religiões organizadas e até mesmo “Deus”, o Japão não é um pais anti-religião como seus jogos fazem parecer. Apesar de ser um dos países que o numero de crentes mais diminui no mundo segundo reportagem da BBC News Brasil “Os países mais e menos religiosos do planeta” de 14 de abril de 2015, a religião praticada no pais é diferente como acontece no ocidente em que vivemos e isso de alguma forma é mostrada em seus jogos.

Essa questão de um vilão alcançar suposta divindade para moldar o mundo de acordo com sua absoluta vontade versus o poder do coletivo de quem quer preservar o mundo como eles conhecem, irá mostrar uma diferença de entendimento de religiosidade e outros temas dos japoneses e do mundo ocidental, mais especificamente aqueles que são judaico-cristãos.

Diferente do Ocidente, o Japão tem em sua história a questão de coletivo bem forte, e isso se mostra no panteão de divindades veneradas. As religiões predominantes no Japão são o Xintoismo, Budismo e uma pequena parcela cristã. O Xintoismo e Budismo já diferem do que chamamos de religiões abraâmicas monoteístas, uma vez que elas não acreditam ou veneram um Deus todo poderoso e sim focadas mais em rituais e outros ensinamentos providas de tradição ou espiritismo, por exemplo.

Mesmo tendo essas três religiões, é comum japoneses se descreverem como ambos xintoistas e budistas, e participarem de ritos em templos de ambas as religiões. De acordo com o vídeo do canal The Game Theorists sobre Final Fantasy ser anti-religião, é discutido sobre ter mais de uma religião para a maioria dos japoneses, não exclui uma as outras. Isso pode ser visto também no jornal japonês de estudos religiosos (Japanese Journal of Religious Studies 42/2: 185–203 © 2015 Nanzan Institute for Religion and Culture) escrito por Jesse R. LeFebvre, os japoneses quando se trata até mesmo do cristianismo, eles aderem ritos como o casamento em igrejas sem problemas, porém sem se considerarem religiosos daquela única prática. Então temos o seguinte exemplo de vida no Japão, quando nascem, muitos japoneses são da religião xintoista, sendo “batizados” em templos xintos, quando eles crescem e casam, eles tem um casamento cristão, em igrejas com padres, e na morte, passam por ritos budistas com monges e familiares.

É importante falar também que historicamente, o Japão já se opôs ao cristianismo, que como característica tem o foco em venerar um Deus supremo acima de tudo e todos. Durante 1565 até 1587, o imperadores reprimiram a religião no país, até a proibirem oficialmente após a unificação do Estado que passava por um guerra civil contra o xogunato que ganhou, e o Japão entrou em um ditadura militar liderada por Tokugawa Ieyasu. Uma vez que não havia sentido ter uma crença onde deus é mais importante que a autoridade local, e todos os japoneses eram devotos do ditador, a religião foi proibida entre os anos 1637 e 1638. Nesse época ficou conhecido alguns mártires do cristianismo que foram caçados e mortos no Japão Imperial, pois estavam no pais em missão para catequizar a população local. Mesmo acontecendo isso, alguns japoneses continuaram praticando a religião na clandestinidade e atualmente anexaram a religião ao seu dia a dia, porém sem alterar completamente suas outras crenças.

Podemos ver então que os japoneses não são contra religião organizada em si, mas interpretam e praticam de forma diferente do ocidente, uma vez que eles não mantêm foco em apenas uma religião ou divindade. Em seus jogos, fica a critica que seguir cegamente uma religião, sendo ela envolvida em política, ou como for, pode trazer problemas e desastres para uma pessoa ou o mundo. A diferença é que não temos como subir uma torre e matar “Deus” propriamente dito, o que nos resta é então resolvermos as diferenças religiosas e politicas que prejudicam a vida de pessoas, nem que seja expressando esse ponto de vista através de historias em vídeo games.

Imagem 1 “Heather depois de matar Deus” Imagem 2 “Heather curtindo seu cabelo loiro”

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Gust

Fiz um curso de uma semana de jornalismo de games, e aqui vai ser onde quero praticar minha escrita sobre jogos ;)